Você está lendo: "A Ira dos Imortais" - Capítulo 01
Peregrinos

O despenhadeiro não a assustava. Estava parada de pé acima de um pequeno monte, observando a grande movimentação logo abaixo, no vale. Uma massa de pessoas, composta de jovens, idosos, mulheres e crianças, se organizava em uma fila interminável, rumando para a grande Gahari. A cidade se escondia em meio à montanhas áridas e, para adentrá-la, aqueles que não o faziam através do ar precisavam se esgueirar por uma estrada entre dois penhascos. Apesar de o local parecer assustador, a estrada era segura pelas parede das grandes montanhas, que protegia os habitantes de animais selvagens ou tempestades de areia. Os homens que guardavam os enormes portões da cidade eram corpulentos e vestiam tecidos amarelados por baixo da armadura de metal. Eles guiavam o grande grupo de pessoas para dentro das muralhas com gestos e gritos. De cima ela observava tudo, insegura, pensando no futuro incerto daquelas pessoas. Ao seu lado estava Torius, seu irmão de clã. Ambos eram alados. Suas asas simples agitaram o ar atrás de seu corpo com irritação, os olhos seguiam a movimentação com interesse.

– O que acha que vão fazer com essa gente? – Perguntou ao irmão de clã. Por um momento desviou o olhar da procissão para encará-lo.

– Os mais fortes talvez tenham chance na guarda da cidade – respondeu ele com os olhos ainda fixos à cena. – Temo que os fracos, doentes e as crianças sejam colocados em qualquer buraco. Os príncipes de Gahari de mal nada farão, mas também não proverão moradia de qualidade ou alimento suficiente para todos.

– E os imortais não têm poder aqui.

– Sim – concordou. – Essa gente terá de trabalhar pela sobrevivência.

– Bem, era o esperado. Com a cidade em ruínas, não tinham escolha. – Com expressão soturna, ela parou o voo antes de prosseguir: – Fiquei surpresa com a reação dos príncipes.

– Para eles é um benefício receber refugiados, serão bem quistos pelos mercadores e por todos que vivem fora da cidade.

Assentindo, ela virou de costas para a movimentação e ajeitou seu coldre. A bainha negra que envolvia sua espada balançou de leve, os pequenos sinos que dela pendiam tilintaram ao vento. A alada chamava-se Alaïs e, juntamente com Torius e mais trezentos irmãos de clã, fazia parte dos Peregrinos. Assim eram chamados por não possuir moradia fixa e permanecer em constante movimento através das Terras Vãs, como era chamado o maior território ao sul de Ala, o continente onde estavam. Apesar de pertencerem aos Peregrinos, cada um dos irmãos de clã um dia fizeram parte de outra família, em outra cidade de algum reino. Alaïs e Torius antes de ingressarem no grupo tinham residido em Alfhëin, um reino ao norte. Ela entrou para o clã assim que completou quatorze, há cinco anos, e nunca se arrependeu. O alimento por vezes era escasso, a cama não era boa, mas as companhias e o objetivo do grupo compensavam por qualquer desconforto. Além disso, as oportunidades dadas aos Peregrinos eram muitas.

Alaïs olhou para o horizonte e disse ao irmão de clã:

– O sol está se pondo. É melhor voltarmos.

Torius abriu suas asas e alçou voo rapidamente, seguido pela irmã. O vento batia em seus rostos e fazia os cabelos e as vestes leves esvoaçarem. Enquanto voava, Alaïs pensava em seus irmãos de clã. Os Peregrinos eram liderados por um sacerdote branco treinado em Rök. Hansen era seu nome. Ele era o único responsável pelo rito de passagem que oficializava a entrada de um novo membro no grande grupo. Para ingressar nos Peregrinos, o candidato era submetido a um jejum de quinze dias e, ao fim do período, participava da caça ao lince na Mata da Solidão. Na caça, o candidato portava uma adaga feita de osso e deveria matar o lince antes de preparar o animal para servir de alimento ao grupo. Por vezes mais de uma pessoa solicitava entrada no mesmo período. Assim, providenciavam mais animais para a caça e um rito coletivo era organizado. Nos últimos três dias, cinco pessoas haviam pedido para se juntar ao grupo. Enquanto Hansen organizava os preparativos, Torius e Alaïs verificavam a situação em Gahari.

Tinham chegado à cidade no dia anterior, após a notícia de que o pequeno vilarejo de Lima havia sido incendiado. Tiveram esperanças de encontrar com os príncipes na grande fortaleza de Gahari naquela tarde.

– Klaus encontra-se muito doente – havia dito um guarda. – Não poderá receber visitas hoje...

Alaïs rolou os olhos. Todos sabiam que os gêmeos nunca apareciam em público sem a presença um do outro. Isso significava que Nicolai, seu gêmeo, também não receberia os enviados. Foi quando Torius disse ao guarda:

– Diga aos seus senhores que viemos a mando de Meredith.

O homem se espantou. Não foi preciso dizer aos gêmeos quem tinha enviado os dois peregrinos. Era de ordem suprema encaminhar ao salão principal da fortaleza qualquer um em nome de Meredith. Minutos depois, Torius e Alaïs se encontravam frente a frente com os príncipes. Eram adolescentes. Ambos estavam sentados em almofadas coloridas de seda dispostas sobre um baixo e largo patamar dourado, no centro do salão. Vestiam ricos gibões de cetim ghäleno, adornados com fios de prata e mantos listrados. Duas pesadas coroas de marfim repousavam em seus cabelos. No momento da visita, estavam no meio de uma refeição.

Ajoelhado, o guarda apresentou os visitantes.

– Senhores, esses são Torius e Alaïs, dos Peregrinos. São enviados da senhora Meredith de Ghäle.

Na extremidade esquerda do patamar, Nicolai largou seu garfo dourado sobre o prato em que comia. Por um momento, o ruído metálico que percorreu todo o salão foi o único som a ser ouvido. Seu irmão Klaus ainda mastigava a comida do outro lado da mesa que os separava, visivelmente desconfortável. Todos na fortaleza sabiam que Meredith de Ghäle era um nome que deveria ser evitado no local, apesar de sua grande importância. Meredith era a dama que liderava os Peregrinos ao lado de Hansen, mas por acaso também era mãe dos gêmeos ali postados.

– Dê um passo à frente – disse Klaus aos visitantes.

– Venho em nome de sua mãe, majestade. – Torius deu um passo na direção do patamar e ajoelhou-se.

– Isso nós já sabemos – cortou Nicolai. ¬– Diga, o que essa traidora quer de nós?

– Não seja indelicado, Nicolai – disse o irmão, sorrindo. Virou-se para os visitantes com falsa ternura e continuou: – Irmãos peregrinos, o que os traz à cidade?

Torius pigarreou. Atrás dele, ainda de pé, Alaïs se retorcia.

– Viemos em busca de ajuda. Lima foi incendiada nesta manhã... Gostaríamos de pedir abrigo para a população que vem de lá.

Com os Peregrinos era raro haver rodeios em assuntos de extrema urgência. As pessoas de Lima precisavam de abrigo, a cidade mais próxima não era Gahari, mas lá teriam mais chances de lidar com eventuais infortúnios, dada a ligação de Meredith com os príncipes. Os Peregrinos buscavam sempre fazer o melhor que podiam por todos os cidadãos que encontravam. Justiça era o que realmente motivava o grupo.

Klaus, ainda sorrindo, olhou para o irmão do outro lado da mesa. A expressão de Nicolai era de puro ódio. Provavelmente ainda pensava na mãe e, talvez, nem tivesse prestado atenção ao pedido.

– Abrigo? – Klaus prosseguia – E são quantas as pessoas que necessitam de abrigo, peregrino?

– Cento e cinquenta, eu calculo. São em sua maioria mulheres e crianças. A população de Lima é forte, senhores. Talvez pudessem ajudar na guarda da cidade.

– Desses assuntos trataremos nós. – A expressão de Nicolai transbordava irritação. – Nossa mãe é que pede ajuda por eles?

– Sim, senhor.

– Eles podem vir para cá, nós os acolhemos. A cidade é grande, trabalho não faltará. Está de acordo, Nicolai?

O irmão ainda mantinha o semblante fechado, mas assentiu. Com os lábios entreabertos, Alaïs parecia surpresa com a rápida decisão. Torius se levantou e disse:

– Em nome dos Peregrinos, eu agradeço.

E assim se dera o rápido encontro com os príncipes de Gahari. Eles não sabiam, mas Meredith de Ghäle já havia pedido à população de Lima que seguissem rumo à cidade antes de qualquer pedido. Àquela hora, todos já se encontravam próximos às muralhas.

Agora, dando uma última olhada na cidade ao longe, Alaïs rodopiou no ar e sumiu, deixando uma visível distorção no local em que se encontrava segundos antes. Segundos depois, surgiu em outra paisagem. Os penhascos de terra árida que rodeavam a cidade de Gahari agora davam lugar a inúmeros montes verdes que se perdiam no horizonte. Ainda assim, era possível ver ao longe a grande área amarelada que haviam deixado para trás. Os alados possuíam diversas habilidades que os humanos não dominavam, mas a desmaterialização não era uma delas. Havia no mundo poucas pessoas que conheciam essa habilidade e a maioria delas pertencia aos Peregrinos. Todas haviam sido treinadas pelas mãos de Hansen, quando ele resolveu que os Peregrinos deveriam fazer mais do que somente andar de um lado para outro. Hansen era um homem de muitos truques e alguns haviam sido ensinados ao grupo, como a desmaterialização.

Torius apareceu ao lado da irmã, que pairava a alguns metros da abóbada de uma grande árvore. Diminuiu a velocidade e encarou Alaïs, que estava com ambas as mãos no abdome.

– Algo errado? – Ele perguntou.

– Eu ainda não me acostumei a essa habilidade de Hansen. Estou meio enjoada.

– Você se acostuma, tenho certeza. Eu me acostumei. – Com o dedo indicador ele cutucou a barriga da irmã de clã através do couro. – Nos primeiros dias eu sentia muito enjoo toda vez que me desmaterializava. Aí descobri que era falta de uma boa refeição. Acho que é disso que você está precisando.

– Talvez seja – sorriu com vergonha.

Continuaram a voar por mais alguns minutos até encontrarem o centro da grande floresta que chamavam de Mata da Solidão. Tinha muitos quilômetros de extensão e altura – algumas das árvores milenares chegavam a atingir quarenta metros. Um ser humano por terra poderia demorar vários dias para sair de seus limites. Os Peregrinos haviam montado um acampamento provisório perto de um riacho no centro da mata, onde encontrariam água e provisões em abundância durante o período da caça ao lince. Alaïs e Torius haviam acabado de atravessar a densa abóbada da mata quando avistaram o acampamento: as tendas se encontravam perto umas das outras, em formação pouco organizada. Olhando o acampamento todo ali de cima, parecia um enorme quadrado malformado.

Aterrissaram em uma pequena área ao lado da tenda principal. Os irmãos de clã que trabalhavam fora das tendas – pescando ou cortando lenha – saudaram os recém-chegados com reverências e sorrisos. No grupo, humanos e alados viviam em paz; a rivalidade por vezes existente entre as duas espécies ali não se perpetuava. Sem demora, Torius e Alais entraram na grande tenda central esperando encontrar Hansen e Meredith. Somente o homem estava presente. Estava sentado em sua almofada preferida, disposta junto de outras em volta de uma peça quadrada que lhe servia de mesa. Com alguns papéis na mão, Hansen tinha os olhos fixos na entrada da tenda desde antes de os dois alados entrarem. Sentira a presença dos irmãos de clã assim que se materializaram nas alturas.

– Então Meredith estava certa – disse ele, sorrindo.

Apesar de ser um sacerdote, Hansen vestia um gibão de couro fervido e tingido de negro por cima de uma camisa branca de mangas compridas e calças de linho. Era jovem para um sacerdote, aparentava quarenta anos, seus cabelos castanhos eram curtos e desarrumados. Pareceria um humano qualquer ao primeiro olhar, mas bastavam alguns minutos de conversa para que notassem suas peculiaridades. Era capaz de predizer coisas, sentir vibrações no ar e conhecia muitas habilidades estranhas. Seus sentidos eram muito aguçados, o que ajudava muito o grupo em diferentes situações. Ficou de pé e cumprimentou os recém-chegados com um abraço.

– Sim, mestre Hansen – assentiu Alaïs. – Antes nos disseram que Klaus estava doente, mas bastou mencionar um nome para que nos recebessem. Onde está ela, afinal?

– Foi até o lago – respondeu Hansen. Inspirou o ar lentamente antes de prosseguir. – Já está voltando com peixes frescos.

Os alados não pareceram surpresos, estavam acostumados com as premonições do sacerdote.

– E a caça ao lince? – Torius perguntou.

– Será realizada amanhã. Tomei a liberdade de adicionar um dia ao jejum dos candidatos, eles são mais fortes do que eu pensei.

Torius se lembrou dos dois últimos que tentaram ingressar nos Peregrinos. Um deles desistira do jejum depois do terceiro dia, abocanhando um sapo cru na beira do lago. O segundo perdeu a vida na caça: o lince devorou suas entranhas. Três anos tinham se passado desde então. Os Peregrinos não eram um grupo tão famoso fora de Ala, mas alguns senhores de diversas terras já tinham ouvido falar deles em algum momento. Eles buscavam fazer valer os direitos de qualquer cidadão que encontrassem pelo caminho, muitas vezes abdicando de seus próprios direitos. Por isso escolhiam não possuir moradia fixa e andar por terras livres sobrevivendo do que encontravam na natureza.

Os que solicitavam entrada no clã muitas vezes eram prisioneiros já absolvidos, guerreiros cansados, mulheres que desistiram da vida de prostituição ou mesmo jovens em busca de alguma aventura. Hansen aceitava qualquer pessoa, humano ou alado, desde que conseguisse sobreviver ao jejum e à caça. Na época de sua criação, o grupo era formado por menos de dez membros, hoje somavam quase trezentos. Alaïs tinha entrado para o clã cinco anos antes, mas Torius já estava com eles a mais de oito.

– E como estão os príncipes? – Indagou o sacerdote.

– Não estão doentes – foi Alaïs quem respondeu. – Estavam comendo muito bem também. Tinham um grande banquete.

– Não me surpreende. Gahari é uma cidade mercantil, eles têm acesso a alimentos do mundo inteiro, podem ter tudo o que quiserem. Não parecem filhos de Meredith...

Os três sorriram. Hansen fez um gesto para que os dois o seguissem para fora da tenda, onde alguns homens ainda cortavam lenha. Tinham acendido uma fogueira entre as enormes árvores e outros peregrinos tiravam as tripas de alguns peixes. Inúmeras outras fogueiras iam aparecendo por toda a extensão do terreno repleto de cabanas. O sol logo ia se pôr e os peregrinos já preparavam o fogo que iluminaria a noite e daria a eles o que comer. Hansen e os dois alados aproveitaram que o céu ainda estava claro para ajudar a preparar a janta. Foi quando ouviram um barulho de cascos.

Finalmente Meredith estava voltando.

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