Vermelho

Por em 21 de jan. de 2014 | 01:39 Deixe um comentário

Em uma das ruas daquela pacata vizinhança, as pessoas se perguntam por que diabos a casa de número 57 recebe tantos convidados. Lá mora uma moça de quadril largo que alugou o imóvel logo depois do falecimento do antigo morador, um velho tarado que nunca se fazia presente em público. A realidade atual não parece ser distante: quase não se vê a moça ultrapassar o beiral que separa a casa do resto do mundo. Ainda assim, lá estão os convidados, subindo as escadas e entrando pela porta recém-pintada de vermelho. Alguns vizinhos têm uma opinião muito controversa sobre o que se esconde por trás daquela cor, mas, até onde se sabe, poucos conhecem a real história da propriedade. Enquanto a vizinhança continua especulando, o carteiro passa em frente à porta vermelha e enfia pelo vão da correspondência alguns papéis amarelados.
Quando a portinhola emite seu som enferrujado, Ágata desvia seu olhar despreocupado da televisão e observa os papéis caírem no chão de taco como grandes pedras. As contas chegaram. Como se uma tempestade fosse inundar a casa a qualquer momento, Ágata apaga seu cigarro na madeira do sofá – já todo puído – e sai correndo para apanhá-las, rasgando os envelopes com as unhas, tomando o cuidado necessário para não danificar o esmalte. Ela lê: $250 pelo consumo da energia elétrica, $97 pelos gastos com a água, mais $52 do gás encanado e $137 pelo agregado que a companhia telefônica cobra pelo uso da linha, da internet e da TV a cabo. Os números se perdem no raciocínio de Ágata, que nem se dá ao trabalho de completar a conta. O total é grande de qualquer forma.
A vontade que tem é de amassar os papéis em bolinhas e tentar se divertir arremessando-as na cara do apresentador do telejornal, que logo deve ser cortado da programação da vida de Ágata. Porém, ignorando seus impulsos, ela junta as contas em um pequeno maço e descarta-as na mesa de centro. Depois pensa nisso. No momento em que o carteiro havia passado, outros pensamentos tomavam conta da mente da mulher, que nem sequer prestava atenção na programação televisiva. Pensando bem, se cortassem o cabo, televisão não faria muita falta mesmo. Ágata pensava em seu vizinho, Jonas. O garoto não tinha muitos atributos físicos, e ainda era menor de idade, mas a audácia do moleque foi mais do que suficiente pra fazer com que Ágata gastasse alguns de seus minutos pensando nele. O problema é que os minutos tornaram-se horas.
Jonas era apenas o garoto metido a rapper que morava na casa ao lado, que saía pra andar de bicicleta aos sábados e na viagem de volta trazia sanduíches da lanchonete. Ágata sabia que a família do menino era daquele tipo que sempre paga as contas em dia, que podia se dar ao luxo de possuir algumas regalias e embarcar em uma viagem ao final de cada mês. O lucro era tão grande que a casa sempre estava em reformas, sempre aumentando de tamanho. Contudo, na noite anterior Jonas havia aparecido no beiral de sua porta lhe oferecendo um maço de dinheiro cuja existência seus pais desconheciam. Veio trajando seu boné mais caro e o blusão mais largo que Ágata já tinha visto na vida, peças que nada tinham a ver com aquela carinha de anjo que o menino ostentava.
“Quero te pedir uma coisa”, ele havia dito, mas a pseudo-embriaguez de Ágata quase não o deixou prosseguir. A fumaceira que reinava em sua sala era outro fator que a impediu de raciocinar com clareza, tornando sua visão mais enevoada que a própria mente. Com a bebida transbordando em seu copo de plástico, ela o deixou entrar pensando que era somente mais um de seus convidados, aparentemente não dando atenção ao fato de este ser um menino pouco mais baixo que ela. Foi em meio a essa mesma onda alcoólica e regada a nicotina que ele se pôs a mergulhar pra poder finalmente mostrar a que veio. Quando balançou o maço de notas verdinhas na frente da cara de Ágata, ele não tardou a abrir o jogo. “Quero contratar seus serviços”. Ao dizer, Jonas não soube se a expressão de amargura no rosto da mulher surgiu do cigarro mal tragado ou se era reação ao seu pedido.
O fato é que agora, devidamente sóbria, Ágata repassa mentalmente algumas passagens do diálogo que travou com o garoto, como se marcasse a caneta as melhores frases, invés de se preocupar com coisas mais urgentes, como as contas largadas na mesa. Pensa em como é engraçado um calhamaço de notas valiosas e coloridas aparecer em sua porta bem no momento em que ela mais precisa. E o mais incrível é a que esse dinheiro vem associado. Ágata sabe da fama que tem na vizinhança, mas contrario ao que todos pensam, ela não é e nunca foi uma prostituta. Dá suas festas religiosamente toda semana, mas não pode fazer nada se a maioria dos convidados é composta por homens solteiros que se dispõem a arcar com os gastos da bebida e do cigarro. É muito menos culpada se eles não sabem controlar o impulso sexual que é eventualmente dirigido a ela.
Ágata pensa na audácia do garoto enquanto traga outra vez. Ele havia dito que o dinheiro era fruto de economias da própria mesada e que juntara com o único e exclusivo propósito de pagar por uma noite com ela, por quem se apaixonou no momento em que a viu. Como ele havia estipulado aquele valor ela não sabia, mas nem todo o dinheiro do mundo pagaria por aquilo. Ágata não era uma prostituta. Recusou o pedido com a melhor simpatia que pode reunir, mas sem deixar de soltar uma sonora risada quando entrou no banheiro pra fazer seu terceiro xixi. Ela permitiu que o garoto desfrutasse de sua festa, sem que a língua tocasse em uma gota de álcool – apesar de ele ter inalado toda aquela fumaça. Que mal faria ao menino um pouco de diversão? Já devia ser frustrante o suficiente pra ele voltar pra casa com a virilidade ainda dentro das cuecas.
Com a mente cansada, ela olha pras contas acumuladas na mesa de centro e tenta nem se lembrar dos valores ali impressos. Pela última vez ela pensa no maço de notas. Em Jonas pensaria algumas vezes mais. Cruzaria com ele na calçada, lançaria um oi empolgante toda vez que o visse passar de bicicleta. Ele lhe daria um sorriso, todo tímido, mas satisfeito por ter passado uma noite na companhia da mulher e de seus convidados. Aos amigos ele nada contaria. Lá fora, na calçada, um gato malhado brinca com um copo plástico, souvenir da noite anterior. Naquela casa, a porta vermelha hoje está fechada, mas a vizinhança continua a especular. E Ágata continua a dever.
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