
Ele não sabia o que comprar. Estava sentado na cadeira de massagem exposta aos consumidores, olhando diretamente para a televisão gigante em sua frente. A grande loja de departamentos estava abarrotada de pessoas naquela véspera de festividades; ele era só mais uma delas. Algumas passavam e olhavam torto em sua direção, talvez se perguntando sobre o que um cara estaria fazendo de roupão listrado sentado no meio do mercado assistindo a um vídeo natalino. Outras delas somente riam e se questionavam sobre o porquê de elas mesmas nunca terem coragem de fazer o que ele fazia, pois certamente metade deles já pensou em sentar em uma daquelas confortáveis poltronas em exposição.
Talvez a televisão estivesse transmitindo um bonito comercial de enfeites festivos que se encontravam para compra no corredor de número sete, mas ele não prestava muita atenção. Seu olhar vagava perdido entre o verde e o vermelho da fita que a menina loura do comercial carregava na cabeça. Ele queria mesmo saber em que corredor poderia comprar aquela fita, pois poderia levá-la para dar de presente a uma de suas vizinhas, talvez. Mas a propaganda exibia somente enfeites para árvores e não para cabeças louras. Talvez ele tenha ficado sentado ali durante pelo menos dez minutos antes de se levantar devagar para não tropeçar com as sandálias – nos últimos dias elas estavam causando-lhe calos bem doloridos – e seguiu para outro corredor.
Suéteres em promoção, dizia uma faixa pregada no alto de uma prateleira. A última palavra praticamente piscava em sua mente, lhe pedindo que chegasse mais perto. Sentiu a textura do tecido de um dos suéteres lisos, vermelho, de corte tradicional. A peça de roupa trazia uma fina faixa branca costurada dos ombros até os pulsos. Tirando-o do cabide, ele pegou um dos braços do suéter e roçou na bochecha. Era macio. Abaixo desse vinham ainda mais, idênticos um ao outro em tamanho e forma, exceto pelas cores, que se diferenciavam em amarelo, azul e verde. Pegou um de cada cor e colocou em um carrinho vazio que estava parado ali perto, tomando-o para si. Continuou seguindo pelo mesmo corredor olhando para dentro do carrinho de compras, feliz com os suéteres coloridos que havia escolhido. Eram lindos e, pensando bem, combinariam com os pares de tênis que havia adquirido no dia anterior.
Voltou o olhar para as prateleiras abarrotadas e ouviu uma senhora soltar um murmúrio de felicidade ao seu lado:
– Olhe isso, Catarina! Não é uma beleza de utensílio?
Uma mulher mais nova pegou o objeto na mão, interessada. Era um pequeno abridor de latas multiuso, cheio de cabinhos e pontas afiadas que poderiam ser usadas pra uma sorte de coisas. Dando alguns passos em direção às senhoras, ele chegou mais perto do estande onde estavam paradas, tentando não chamar muita atenção. Estendeu a mão e pegou um objeto também, ainda atento ao que diziam as mulheres:
– Aqui diz que esse mais fino é para furar caixas de leite, mas para isso existem tesouras, mamãe. Compremos uma tesoura.
– Catarina, deixe de ser tola. Leia direito às instruções. Veja, se você puxar essa abinha, verá que daqui sai uma tesourinha. Com ela posso cortar linhas e até a ponta de um barbante. Vai ser útil para o enxoval de sua prima.
Voltando o olhar para o objeto que tinha em mãos, ele puxou a mesma aba de ferro, como a senhora havia feito, exibindo um olhar de surpresa quando uma pequena tesoura se revelou na ponta de seus dedos. Abriu um sorriso e colocou com cuidado três daqueles utensílios no seu carrinho e continuou andando. Notou que muitos dos consumidores já se dirigiam aos caixas. Já devia estar ficando tarde, mas ao olhar no relógio percebeu que a novela das nove não deveria ter começado ainda. Voltar para casa naquele momento seria quase como assinar sua sentença de morte ou perder feio para o tédio. Pensando nisso, ele fez uma curva com o carrinho em direção oposta aos caixas e seguiu para o próximo corredor.
Passou direto pelos produtos de beleza – pois não gastaria seu precioso tempo passando um creme para a derme, sendo que sua derme já havia nascido bem tratada – e chegou a uma sessão de brinquedos. Ali havia um odioso palhaço mancando exageradamente por ter pisado de mentirinha em uma peça de lego, enquanto três crianças quase vertiam lágrimas de crocodilo de tanto rir. Observou bem o palhaço. Vinha tão atropelado na pieguice do próprio oficio que não trocava um olhar sincero com nenhum dos meninos risonhos. Ele se perguntou quanto devia ganhar alguém naquela posição odiosa, despejando todo o seu juízo de valores no pobre trabalhador. Fingiu sentir-se atraído por um dos brinquedos mais distantes do comediante e deu meia dúzia de passos para longe dali. Ao lado de uma prateleira de bonecas uma garota implorava à mãe algo quase ininteligível:
– Mãe, a boneca, mãe. Por favor, compra a Adriane pra mim! Compra mãe! A Adriane!
A mãe, uma moça de aparência cansada, ajeitou um punhado de cabelo atrás da orelha e olhou bem nos olhos da filha antes de praguejar:
– Meu deus, menina! Não vou comprar a Adriane, nem a Maria nem a Joana. Fica quieta que seu pai já ta voltando. Olha lá.
Como dito, um homem vinha andando por entre os corredores com uma grande árvore de natal embaixo de um braço enquanto o outro envolvia duas caixas de pisca-pisca. Ajeitou tudo no carrinho que a mãe segurava e pegou a filha no colo.
– Que feio, uma florzinha fazendo essa birra toda. Dá pra te ouvir lá do outro lado do mercado, sabia? Uma flor tão bonita esperneando! Que coisa feia.
A garota enfiou o dedão na boca e permaneceu chupando quando o casal partiu em direção aos caixas. O palhaço continuava fazendo suas graças, as crianças continuavam rindo e ele partia para o próximo corredor. Percebeu que ali havia mais brinquedos e uma música alegre e infantil saía por uma pequena caixa de som. Só quando chegou à metade daquele corredor percebeu que a música vinha de um ursinho de pelúcia falante. Pegou o animal na mão, notando que em sua barriga um botão vermelho em forma de coração dizia: “Aperte aqui”. “Sou seu amiguinho!”, pensou que ele ia dizer, mas o animal de pelúcia branca começou a entoar uma música que não falava sobre as habituais coisas que todo brinquedo falante fala. A letra era odiosa. Um pesadelo. Ele permaneceu parado, segurando aquele animal, quando uma mulher passou ao seu lado de mãos dadas com o filho, ambos cantarolando alegremente aquela música que devia ser de domínio público. O garoto, vendo que o único urso da prateleira estava nas mãos de um homem desconhecido e estranhamente vestido, pulou no lugar e o empurrou.
– Ou! Eu vi primeiro! Ele é meu!
Atordoado pela abordagem do garoto, ele olhou para a mãe, esperando que ela o repreendesse de alguma forma. Ela poderia ter dado uma lição no moleque, poderia ter dito qualquer coisa que lhe ensinasse a desenvolver bons modos quando estivesse lidando com estranhos em um supermercado, mas a única coisa que ela fez foi dizer:
– Moço, por favor, não compre esse brinquedo. Estivemos procurando-o pela cidade toda. Eles disseram que esse supermercado era o único que ainda tinha esse modelo.
Vendo que ele permanecia em silêncio, visivelmente abalado pela situação, ela lançou:
– Quanto você quer por ele? Eu pago o que for.
Aquilo fez com que ele se perguntasse o que tinha de tão valioso em um urso de pelúcia tão comum, que cantava uma música abominável. Pensou que poderia arrancar da mulher um bom dinheiro, vendo que aquele animalzinho deveria valer uma fortuna, já que aparentemente era o último em estoque. Porém, não queria causar discórdia. Estendeu o boneco para o garoto gentilmente, lançando um sorriso falso que pareceu convencer a mãe da existência de generosidade no mundo. Sem nem agradecer, o garoto saiu correndo com uma mãe mal-agradecida aos calcanhares. Ela ao menos lhe lançou um olhar de piedade antes de sair em disparada atrás do filho.
Tentando esquecer o episódio do urso, ele seguiu pelos corredores agora vazios em busca de mais mercadorias. Encontrou um par de pantufas listradas que lhe pareceram bastante aconchegantes e jogou-as no carrinho. Viu que estavam valendo uma pechincha e, pensando melhor, lançou mais duas pantufas no carrinho, tomando o cuidado de não repetir cores. Após mais uma viagem por entre as sessões, seguiu para o caixa costumeiro contabilizando as mercadorias que levava. Eram os quatro suéteres, os três utensílios multiuso, as três pantufas coloridas, quatro toalhas de rosto, um jogo de copos azuis, talheres amarelos, um jogo de pratos de plástico estampados com pinturas famosas, um ralador de legumes, vinte e três frascos de vidro para temperos, dois sacos de arroz, doze latas de pepino em conserva, quinze pacotes de macarrão instantâneo, um controle remoto universal, um relógio de parede, dois porta-retratos e um faqueiro de madeira. Era o suficiente.
Chegando ao caixa, lançou um sorriso para a conhecida atendente.
– Olá, Sr. Morris. Como vai?
– Muito bem, Shirley. E você?
– Ah, o senhor sabe como é. Trabalhar aqui é cansativo.
– Imagino, imagino.
O silêncio tomou conta dos dois enquanto ela passava as mercadorias pelo leitor de código de barras. A cada mercadoria contabilizada, os números marcados no visor digital acima da cabeça da atendente iam mudando. Morris ajudou um garoto a empacotar os produtos, certificando-se de que ele não misturasse os orgânicos com os materiais.
– Mais alguma coisa, Sr. Morris?
– Sim. Por favor, mande entregar na minha casa aquela poltrona aconchegante no corredor cinco e também a televisão que está na frente dela?
– Como quiser. O total é de 3.754 reais. É crédito?
– Pode passar no débito.
O esboço de um sorriso dançou pelos lábios entreabertos enquanto ele digitava sua senha no pequeno dispositivo eletrônico.
– A poltrona e a televisão deverão chegar pela manhã. Felipe pode te ajudar a levar o resto das mercadorias agora, se desejar.
– Não, não. Obrigado, mas eu consigo.
Colocando a última sacola no carrinho, Felipe deu licença para que Sr. Morris passasse. Ele saiu pela porta do supermercado já vazio e andou alguns metros até a faixa de pedestres. Aproveitando que o sinal estava fechado, Sr. Morris atravessou as duas pistas da ampla avenida até encontrar a pequena rua do outro lado. Sua casa era a segunda, com vista plena para uma das vias mais famosas daquela cidade. O letreiro da grande loja de departamentos de onde havia saído piscava do outro lado da avenida, alternando entre o vermelho e o branco, que eram refletidos no piche molhado pela chuva. Tirou as chaves do bolso do roupão e abriu a porta. Acendeu as luzes e entrou no pequeno corredor mal iluminado, empurrando o carrinho para frente. Não se incomodou em trancar a porta quando a fechou atrás de si; estava mais preocupado em descarregar as sacolas no sofá da sala.
Porém, antes de começar a desembrulhar as compras recentes, afundou-se em sua poltrona puída e respirou fundo. Onde ele estava com a cabeça? Havia gastado mais de três mil reais somente naquela compra. Somados com os outros mil gastos durante a semana, certamente totalizariam mais de dez. Olhou para o montante de objetos espalhados pelo carpete de sua sala. Havia perdido a conta do quanto já havia acumulado nos últimos anos. Deviam totalizar mais de um milhão de coisas inúteis. As paredes estavam abarrotadas de livros e traças. O chão acomodava toda sorte de quinquilharias sem uso, as quais seriam somadas mais o montante das que estavam no carrinho de compras. As pantufas, as toalhas e os suéteres iriam para o quarto, onde quatro araras amontoavam outras peças que já não cabiam nos dois guarda-roupas. Os utensílios, pratos, copos e talheres iriam para as gavetas abarrotadas da cozinha, que já estouravam. Pensou que as latas de alimentos em conserva, os pacotes de macarrão instantâneo e os sacos de arroz talvez já não coubessem nos armários.
Ainda assim, levantou-se em um suspiro lento e pôs-se a retirar as mercadorias das sacolas. Porque ele precisaria de mais quatro suéteres? Quantas toalhas de rosto eram necessárias para enxugar somente um rosto molhado? Certamente somente um daqueles utensílios magníficos seria suficiente para abrir suas latas e pacotes de comida. Pra que tantos pratos e talheres se uma só boca comeria? Um ou dois copos talvez bastassem para abarcar o conhaque que ele beberia no final de cada noite a partir daquela. As facas que já possuía talvez cortem melhor qualquer pedaço de carne do que aquelas que ele acabara de comprar. Talvez Shirley estivesse cansada de contabilizar suas mercadorias a cada semana. Talvez Felipe estivesse cansado de lhe ajudar a transportar a massa de objetos inúteis através da perigosa avenida um sem número de vezes. Talvez aquele urso de pelúcia fosse mais importante que sua própria existência, ou o odioso palhaço fosse mais digno de respeito. Quem sabe aquela mãe estivera mais correta em agradar ao filho lhe poupando de uma bronca bem dada. Porque o mundo tinha que ser assim, tão incorreto?
Eram muitas perguntas sem resposta, pensava Sr. Morris. Amassou a última sacola plástica e a largou no meio dos amontoados, ciente de que um dia tudo aquilo teria de ser arrastado para um lixão a céu aberto. Um último questionamento lhe invadiu a mente: talvez até os catadores pudessem fazer melhor uso de seus depósitos. A simples ideia o entristeceu. Sentia-se envergonhado por viver daquela forma. Precisava de ajuda. Pensou em procurar pelo telefone e discar para alguém, mas não tinha a quem recorrer. Todos estavam distantes e não era a geografia que os separava. Pensando nisso, ele abaixou a cabeça, escondeu o rosto com as duas mãos e, quieto, chorou.
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